Opção de Pepe pela simplicidade, evocada por muitos, nada tem a ver com um suposto franciscanismo: o fez por saber que um mundo mais justo se constrói distribuindo o excesso de poucos à maioria
Facundo, Ulpiano, José Mujica, José Alberto Mujica Cordano ou simplesmente Pepe Mujica veio ao mundo em 20 de maio de 1935, no bairro de La Arena, em Montevidéu, no Uruguai. Era uma segunda-feira.
A carreira na militância política começou em 1956, no Partido Nacional. Em 1967, se juntou ao Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T), grupo que aglutinava socialistas, maoístas e anarquistas e cujo nome fazia referência ao líder inca Tupac Amaru II. Mujica foi líder do grupo, inclusive.
Os Tupamaros revelavam casos de corrupção e concentração de riquezas, além de operar assaltos, sequestros e assassinatos. O dinheiro roubado era distribuído entre o povo mais pobre de Montevidéu. Mujica foi preso quatro vezes, fugiu e chegou a ser alvejado com seis tiros – várias balas permaneceram em seu corpo.
Uma das fugas foi realizada junto de outros 110 detentos e ficou conhecida como “Operação Abuso”. O episódio entrou para o Guinness Book como a mais marcante da história carcerária mundial devido à quantidade de fugitivos. Hoje, o presídio dá lugar ao shopping de luxo Punta Carretas, em Montevidéu.

E então Mujica foi preso novamente, desta vez como refém da ditadura uruguaia, ficando detido entre 1972 e 1985. Se a resistência dos Tupamaros fizesse algo nas ruas do país, ele e outros presos seriam executados. Sem poder matá-los, os guardas fizeram de tudo para enlouquecê-los.
Desses aproximadamente 14 anos preso, 12 foram em uma solitária de 1,80 m por 80 cm, abaixo da terra. Os guardas os deixavam dias sem água, restando aos detentos beber a própria urina. A comida vinha com terra ou bitucas de cigarro. Quando também não havia refeição, comiam mosca, larva, papel. Nas raras vezes em que saíam do calabouço, iam encapuzados. Após as fezes, tinham que se limpar algemados e privados da visão. Em alusão a esse tempo, já livre, Pepe disse certa vez: “houve muitos anos em que eu ficaria feliz em apenas ter um colchão”.
Da memória de Pepe Mujica, Mauricio Rosencof e Eleutério Huidobro — os outros dois guerrilheiros torturados — nasceu o livro “Memórias do Calabouço”. “Desapareciam os limites entre a realidade e a imaginação”, relata Mauricio na obra que inspirou o filme “Uma noite de 12 anos”. A produção, por sua vez, mostra que Pepe tinha pensamentos perturbados e compulsivos e era o mais solitário, enquanto os outros conseguiam se comunicar de alguma forma.
Mujica, Rosencof e Huidobro foram libertos em 1985 com o decreto de anistia para presos políticos e comuns no Uruguai.
Presidência e anticapitalismo
Pepe Mujica foi deputado, senador, ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca e, em 2010, eleito presidente do Uruguai. Durante os cinco anos de mandato, colocou o país no mapa das nações progressistas e criativas economicamente. Reduziu a pobreza de 37% para 11%. Legalizou o aborto, o uso de maconha e o casamento homoafetivo. Houve, ainda, profunda preocupação com o meio ambiente.
Não menos importante e uma grande marca de sua personalidade, foi a opção por viver com o que considerava necessário. Rejeitou os benefícios da presidência e, em vez do palácio presidencial, decidiu morar na chácara Rincón del Cerro, de sua esposa, Lucía Topolansky. Uma modesta casa com um quarto localizada a 20 minutos da capital.

Doava 90% do seu salário, o que tornava sua renda igual à de um cidadão “comum” no Uruguai. O dinheiro ia para o Fundo Raúl Sendic que, conforme descrito pela entidade, apoia empreendimentos produtivos de uruguaios que têm maiores dificuldades de acesso ao crédito, sem cobrar juros.
Trocou uma lambreta antiga e gasta por um fusca azul. A informação sobre o ano do veículo varia: 1978, 1982, 1987. Mas, em se tratando de Pepe Mujica, o que isso importa? Em 2015, um xeique árabe ofereceu um milhão de dólares pelo automóvel e Pepe pensou em vendê-lo para doar o dinheiro, mas pessoas próximas foram contra. O fusca havia se tornado um “símbolo nacional”. E ficou.
Na busca pela diminuição da desigualdade, mudou a postura sobre os ricos: “Não quero mais esmagar a burguesia, como desejava antes. De jeito algum. Eu quero é ordenhar a burguesia!”
Nos EUA, disse ao ex-presidente Barack Obama (2009-2017) que os estadunidenses deveriam fumar menos e aprender mais idiomas. A empresários do país, defendeu a redistribuição de riqueza e melhores salários para a classe trabalhadora. “Não é mistério algum que menos pobreza significa mais comércio. O investimento mais importante que podemos fazer está nos recursos humanos”. Para universitários, lembrou que não há guerras justas: “A pior negociação é preferível à melhor guerra, e a única maneira de garantir a paz é cultivar a tolerância”. Aliás, Pepe é muito sincero: “uma das vantagens de ser velho é dizer o que se pensa”.
Philip Morris, a maior empresa da indústria do cigarro nos EUA, processou o Uruguai em 25 milhões de dólares em razão das rígidas leis contra o tabaco criadas pelo governo de Pepe. Em 2016, a empresa perdeu o processo e teve que pagar 7 milhões de dólares à nação uruguaia.
Nunca mais!
Na solitária, Pepe fez amizade com nove rãs e observou que as formigas gritavam se chegasse perto para ouvir o que tinham a dizer. Ali, durante anos, não teve sequer um penico. Um dia, pela janelinha da cela, percebeu a presença da alta sociedade em um coquetel nas dependências do presídio e começou a gritar que ia fazer xixi nas calças. E resolveu! “Apesar de subversivo, o prisioneiro tinha direito a um urinol”, disseram. Nove anos depois, prestes a ser liberto, pôde usar o banheiro do corredor das celas e fez algo inusitado: dentro do penico, plantou flores.
Aliás, Pepe foi floricultor e durante décadas forneceu flores para feiras e floriculturas. Adorava cães e teve uma linda amizade com Manuela, sua cachorrinha de três patas que o acompanhava em comícios e carreatas.
Em 1983, o jornalista e escritor Mario Benedetti, do jornal El País, publicou a matéria “Diez años de soledad”, sobre os prisioneiros, nove ao todo, e terminou o texto com um pedido: “Não esqueçamos que, se os revolucionários triunfantes recebem honras e admiração, e até seus inimigos se obrigam a respeitá-los, os revolucionários derrotados merecem ao menos ser considerados como seres humanos”.
Já a obra “Memórias do Calabouço”, fruto das memórias de Pepe, Mauricio e Eleutério, encerra com palavras que, conforme escreve o jornalista brasileiro Rodrigo Casarin, precisam ser ecoadas não só no Uruguai, mas em outros cantos da América Latina:
“Move-nos, a todos, o sentimento desesperado de que as bestas permaneçam em suas tocas, para que no Uruguai de Todos (também deles, em seus respectivos lugares) seja hasteada a seguinte bandeira: NUNCA MAIS”.
Muitos vão evocar em Pepe sua opção pela simplicidade. Mas se engana quem associa essa postura a um suposto franciscanismo, como se ser de esquerda, socialista, progressista ou defensor de um Estado de bem-estar social significasse necessariamente fazer voto de pobreza.
O que ele nos convidou a fazer — talvez sobretudo à esquerda — foi praticar o que se prega. Falou sobre isso em dezembro de 2024, em entrevista à BBC: “Eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram. Mas não me seguem de maneira alguma”. Da forma que pode, Pepe abdicou de luxos por saber que um mundo mais justo só pode ser construído distribuindo o excesso de poucos à maioria.
Afinal, quantos de nós estamos dispostos a seguir seu exemplo?
* Texto publicado originalmente na Diálogos do Sul Global.