Haarp, chuvas e terremotos: o que ciência explica sobre projeto dos EUA no Alaska

Alvo de teorias da conspiração desde os anos 1990, experimento estadunidense voltou a ter destaque após desastres na Turquia e na Síria

No último dia 6 de fevereiro, terremotos atingiram o centro da Turquia e o noroeste da Síria, os mais devastadores na região desde 1939. O epicentro, na cidade turca de Gaziantep, atingiu 7,8 graus na escala Richter. Ao todo, mais de 50 mil pessoas já morreram, milhares perderam suas casas e 214 mil prédios ruíram.

Conforme crescia a contagem de vidas perdidas e de danos materiais, um termo repercutia nas redes associado aos tremores: Haarp. O Programa de Investigação de Aurora Ativa de Alta Frequência, em tradução livre, começou a ser apontado por muitos como uma “arma de guerra” criada pelos EUA. Segundo a narrativa nas redes, esse instrumento seria capaz de provocar terremotos e teria causado a catástrofe turco-síria.

Em 19 de janeiro, uma nuvem lenticular – em formato de lente – foi registrada na cidade turca de Bursa. Após os terremotos, semanas mais tarde, especuladores resgataram os registros do fenômeno apontando que aquilo seria uma “nuvem Haarp”, ou seja, fabricada pela máquina, e não por processos naturais. Aquela seria uma prova da ligação entre o programa dos EUA e o terremoto.

Nas inúmeras postagens que podem ser encontradas, não é explicado exatamente como uma nuvem em Bursa, localizada a mais de 1000 km do epicentro do terremoto, poderia se relacionar com a movimentação de placas tectônicas, ação que ocorre a quilômetros de profundidade abaixo da superfície da terra.

A teoria se espalhou por outras redes além do Twitter, como Facebook e TikTok. O suposto ataque dos EUA seria uma represália à Turquia pelo fato de que seu presidente, Recep Tayyip Erdoğan, tem sido resistente à adesão da Suécia à Otan. A entrada do país sueco, assim como da Finlândia, poderia ter forte impacto na Guerra na Ucrânia, uma vez que Washington conseguiria cercar ainda mais Moscou. Por enquanto, Erdogan só endossou a admissão de Helsinque.

O prefeito de Ancara, Ibrahim Melih Gökçek, chegou a publicar tuítes apontando a suposta ação de potências estrangeiras como causa da fatalidade, indicando uma ação do Haarp por meio de navios de pesquisas sísmicas nas proximidades da Turquia.

A suposta ligação entre o Haarp e eventos climáticos não é nova e já havia sido apontada após os terremotos no Haiti, em 2010, e no Irã, em 2020.

No fim do ano passado, bolsonaristas chegaram a acusar o projeto de causar as chuvas que atingiram as manifestações golpistas. Há também quem associe o programa a antenas 5G e à pandemia de covid-19, como um poderoso método de restrição de mobilidade e redução populacional.

Para tratar dessas especulações e o que há de boato e de fato por trás delas, conversamos com Leandro Tessler, professor da Unicamp, doutor em Física e pós-doutor na área de Ciências Exatas e da Terra.

Nesta conversa, Tessler oferece uma nova visão sobre o assunto e nos ajuda a entender: uma ferramenta como o Haarp é realmente capaz de causar tempestades e terremotos? Confira:

Podemos interferir na natureza, mas não tanto

O ser humano consegue interferir em processos e fenômenos naturais e em várias escalas, explica Tessler: “isso vai desde construir um dique, alterar o curso de um rio, fazer um aterro para criar terra seca onde havia um lago ou utilizar produtos químicos para forçar a precipitação de chuvas”, detalha o professor. Por outro lado, ele continua: “Não é nada óbvio conseguir controlar remotamente o clima em um país inimigo”.

Haarp é um projeto militar dos EUA criado em 1993 e localizado no Alasca. Até 2014, ficou sob o controle da Força Aérea e da Marinha estadunidenses, quando passou a ser administrado pela Universidade de Alaska Fairbanks. São 180 antenas de rádio que formam o transmissor de alta frequência mais poderoso do mundo, cujas ondas enviadas aquecem elétrons na camada superior da atmosfera.

Inicialmente, quando estava sob controle das forças armadas dos EUA, o Haarp foi usado para estudar seus efeitos da ionosfera nos sistemas militares e civis de comunicação e navegação. Agora, conduzida pela Alaska Fairbanks, a estrutura tem foco no estudo da ionosfera, na observação da aurora boreal e em pesquisas sobre a camada de ozônio.

“Os processos induzidos pelas antenas do Haarp ocorrem na termosfera e na ionosfera, acima de 60 km de altitude, enquanto os processos envolvidos na produção de chuva (formação de nuvens e precipitação), ocorrem nas camadas mais baixas da atmosfera, até 10km de altitude”, observa Tessler. A explicação corrobora as informações presentes na página oficial do programa.

Indagado se esse tipo de experimento pode influenciar em processos naturais, o pesquisador dá o caminho: “Depende do que você chama de processos naturais”. 

Segundo o pesquisador, alterar propriedades da atmosfera por meio de um transmissor que não existe na natureza pode ser considerado uma interferência. Porém, isso é diferente de provocar tempestades ou terremotos: “O uso de mudanças climáticas como armas de guerra fica para o domínio das teorias de conspiração”, reforça Tessler.

O início da conspiração

As alegações de que o projeto estaria relacionado a diferentes catástrofes da história recente nasceram provavelmente em 1995, quando Nick Begrich Jr., filho de um ex-governador do Alaska, lançou o livro “Angels don’t play this HAARP, advances in Tesla technology”, sugerindo que as atividades do HAARP poderiam causar terremotos.

A “evidência” do estadunidense, segundo Tessler, seriam os raios que costumam estar associados a erupções vulcânicas: “No entendimento de Begrich Jr., os raios seriam devido a emissões de alta potência na ionosfera. Isso não tem respaldo científico”, afirma o professor. 

Os relâmpagos vulcânicos são descargas elétricas causadas pela erupção vulcânica e não por uma tempestade comum, explica o portal Olhar Digital: “Eles surgem da colisão e fragmentação de partículas de cinzas vulcânicas (e às vezes gelo), que geram eletricidade estática dentro da pluma vulcânica”, ou seja, dentro da coluna de cinzas expelida pelo vulcão.

“As ondas do HAARP se propagam em altitudes muito maiores do que a altura do Monte Everest, não podendo atuar em vulcões”, complementa Tessler.

Notório conspiracionista, Begrich Jr. também seria o responsável por outra famosa teoria conspiratória, sobre os chemtrails, que segundo Tessler nada mais são que os rastros de vapor congelados que vemos em aviões em altas altitudes. Para os teóricos maniqueístas, essas nuvens seriam compostas por produtos químicos, que espalhados sobre a sociedade teriam a finalidade de envenenar, causar câncer e controlar o crescimento da população.

“O Haarp ocupa uma área de 13 hectares cheia de antenas e detectores que são fundamentais para sua operação, uma instalação bastante inusitada feita sem grandes explicações para o público em geral”, descreve Tessler, ao indicar a possível razão para o surgimento das teorias conspiratórias. 

“Vários livros com teorias delirantes foram publicados e o assunto caiu na imaginação popular. Apesar disso, não existe mecanismo físico que possa associar ondas de radiofrequência com desastres naturais”, completa o físico.

Documentos oficiais

Em 1977, a ONU publicou uma resolução proibindo manipulações climáticas como arma de guerra. Já em 1999, foi a vez do Parlamento Europeu lançar um memorando com críticas ao Haarp, indicando ser “uma questão de preocupação global devido ao seu impacto considerável no meio ambiente”. 

A existência desses documentos em organismos internacionais indica perigos como os alegados pelas teorias da conspiração? Na realidade, não:

“A resolução (de 1977) é sobre o uso hostil de alterações ambientais. Imagine, por exemplo, o Brasil abrindo subitamente a barragem de Itaipu causando inundações nos países costa abaixo?”, elucida Tessler, apontando que o texto é muito mais amplo do que o suposto uso bélico do Haarp.

Sobre a declaração da ONU, em 1999, o especialista adianta que o tom é bastante conspiratório, destacando um trecho no qual é afirmado que o Haarp, ao manipular características elétricas da ionosfera, passa a controlar uma quantidade de energia com potencial devastador para um inimigo: “Essa afirmação não faz sentido, porque radiação eletromagnética na ionosfera não pode controlar uma grande quantidade de energia”, avalia.

Tessler prossegue, lembrando que, assim como no Brasil, muitos membros do Parlamento Europeu têm formação científica deficiente: “é bem possível que o texto tenha sido escrito por alguém impressionado pelas teorias de conspiração que circulavam, transformando suas impressões em “verdade”. 

A suposição do professor pode explicar, inclusive, porque a Otan e os EUA se recusaram a prestar esclarecimentos sobre a ferramenta: “seria uma armadilha tentar esclarecer teorias sem embasamento científico. Para os teóricos da conspiração, vira mais evidência de suas crenças”, assinala.

De fato, faz parte do comportamento humano buscar, acreditar e compartilhar notícias e ideias inverídicas ou sem embasamento científico apenas por privilegiarem crenças, gostos e valores pessoais. Essa tendência é chamada de viés de confirmação, conforme explica Davi Carvalho, cientista social e doutorando em Ciência Política na Unicamp, no blog Política na Cabeça: “o mecanismo psicológico que nos leva a confirmar nossas opiniões prévias ocorre de forma involuntária e automática”.

Neste sentido, o surgimento de teorias sobre o Haarp já na década de 1990 indica não só como o fenômeno da desinformação é antigo, mas também a necessidade de educarmos nossa percepção ao consumir notícias na era atual: “é necessário conter o impulso de acreditar imediatamente na informação com a qual se depara e checar sua veracidade”, orienta Carvalho.

Por sua vez, Tessler é enfático: “o que sabemos é que não existem mecanismos físicos conhecidos para que ondas de rádio causem danos ambientais de grandes proporções como chuvas, terremotos ou secas”.


Publicado originalmente em Diálogos do Sul.