Deixar o que conhecia para trás e se aventurar pelo novo foram a chave para Monize se redescobrir e encontrar um lugar onde se sentisse verdadeiramente em casa
Monize Garcia viveu 26 dos seus 27 anos em Barretos, cidade do interior de São Paulo, nacional e internacionalmente conhecida por sua tradicional Festa do Peão. Morava com os pais e o irmão, trabalhava no restaurante da família, saía com os amigos, viajava e tinha aparentemente tudo o que é necessário. Acontece que faltava algo, uma identificação, um sentir-se como parte do ambiente, até que perdeu o pai e teve a certeza de que aquele não era mais o seu lugar.

Foi em 2017, durante um tour pela Europa, que a brasileira encontrou o que procurava. Não sem antes cogitar os Estados Unidos, onde em 2015 fez intercâmbio e notou que a dinâmica era muito direcionada pelo consumo. Na Europa, as pessoas pareciam querer viver mais…
Passando por Portugal, conheceu Rui. O português a incentivou a se mudar para a Inglaterra, onde trabalhava e estudava, e enquanto a ajudava com informações, ela fazia sua parte pesquisando em sites e canais do YouTube tudo o que precisava saber sobre o país e o sistema de imigração. Um ano depois, em fevereiro de 2018, Monize partiu.
Extrato bancário, passagem de volta impressa, uma carta convite de Rui e dinheiro suficiente, em moeda local, para passar dois meses, se adaptar e encontrar um emprego. “Outra coisa foi estar preparada para o frio. Eu cheguei na primavera e a temperatura variava entre 5° e 12°C, mas como tinha checado a média nessa época do ano, me planejei em questão de roupas, mas nada preparada mentalmente”, a barretense ri ao se lembrar. A temperatura na Inglaterra ao longo do ano varia entre 5° e 29°C, mas pode chegar a abaixo de zero e nevar. “Por mais que você se prepare com roupas e psicologicamente para o frio, a realidade é muito diferente”.
A experiência no restaurante da família e a fluência em inglês ajudou Monize a encontrar três empregos em apenas um mês, através de aplicativos. Essas plataformas conectam quem precisa de um serviço a alguém disposto a fazer tal serviço e são usadas geralmente para tarefas braçais, como serviços domésticos. Algumas semanas antes de chegar na Inglaterra, porém, em razão dos conflitos no Oriente Médio, o sistema de imigração tornou mais difícil a obtenção de vistos para pessoas em empregos considerados de baixo nível.
Guilherme Otero é coordenador de projetos na Organização Internacional para as Migrações, órgão que atua no respaldo a migrantes em situação de vulnerabilidade para que retornem de forma digna e a menos traumática possível para seus países de origem. Ele explica que as políticas migratórias na Europa variam muito entre cada país: “Desde 2015, período de ápice no número de entradas na Europa – a grande maioria do oriente médio e norte da África – houve muitas mudanças nesse panorama. Enquanto alguns países resolveram fechar mais as fronteiras, outros promoveram uma abertura maior, como os alemães”. Atualmente, a aprovação de alguns entre os 26 tipos de permissões britânicas oferecidas podem exigir um certificado de patrocínio – geralmente concedido a profissionais altamente qualificados –, fluência no idioma, o pagamento de taxas para acessar o sistema público de saúde inglês e a comprovação de que há recursos para sobreviver no país.
“Como turista eu poderia ficar seis meses, mas como eu já sabia que o visto não chegaria e ficar ilegal não era uma opção, mudei meus planos”, explica Monize. Três meses após a chegada, ela e Rui decidiram que a melhor solução era que ela fosse morar com os sogros em Leiria, cidade à 148km de Lisboa. Em Portugal, a obtenção do visto seria mais fácil em qualquer emprego.

Estima-se que até 2060, o número de habitantes no país cairá de 10,4 para 7,8 milhões; a baixa natalidade e o envelhecimento já têm refletido em falta de mão de obra e Portugal é o país europeu com maior proporção de emigrações em relação à população. Por isso, o governo tem criado formas de atrair imigrantes, ao ponto, inclusive, de não estar dando conta da demanda. O Cartão de Cidadão, como é chamado em território luso, foi entregue a Monize no fim de novembro, mais de um ano após solicitar. “O maior problema é que, sem ele, eu não podia sair de Portugal para ver o Rui na Inglaterra ou minha família e amigos no Brasil”, lamenta.
Esperas e distâncias abrem espaço para que a saudade invada o cotidiano da jovem: saudade de sair com os amigos, das relações e rotinas, de comer um churros… coisas simples que davam sentido e contento em meio à sensação de desencaixe em Barretos. “Tem dias que quase mata”, desabafa. Com Rui era mais reconfortante durante a espera pelo visto, pois ele podia visitá-la a cada dois meses.

Desafio também foi ajustar as contas em Portugal. Ainda que seja fácil encontrar emprego em restaurantes, cafés e fábricas, o salário mínimo oferecido diante do alto custo de vida demanda a ela que seja mais rígida com seu orçamento do que se estivesse vivendo na Inglaterra. Soma-se ainda a bolha imobiliária, de Porto à Lisboa, causada pela grande procura e baixa oferta de imóveis e que tem feito até mesmo portugueses migrarem para cidades menores ao redor.
Os planos de Monize na Inglaterra continuam em primeiro lugar, mas quando estende o olhar para os quase dois anos que se passaram, o saldo é positivo. O continente dispõe de uma gama de atrações culturais e medievais, como castelos, monumentos, museus, belas igrejas e mosteiros. “É uma das minhas paixões. Você passa por lugares e casas que tem centenas de anos. Também tenho aberto a mente para culinária: nunca imaginei que comeria caracóis e agora eu gosto. Há também a facilidade em participar de congressos e exposições mesmo morando em uma cidade pequena” declara.
Atualmente, a viajante trabalha como voluntária em uma loja social da Cruz Vermelha. Presente em 190 países, a instituição de ajuda humanitária tem 170 estruturas locais em Portugal, onde trabalham 12 mil integrantes, sendo 10 mil em regime de voluntariado. Enquanto analisa as roupas doadas, separa aquelas em bom estado e faz atendimento na unidade, Monize tem observado um número cada vez maior de brasileiros em busca de ajuda. Muitos deles, segundo ela, decidiram se mudar e tentar uma vida nova sem antes pesquisar informações básicas como clima e custo de vida. “Não se atentaram ao fato de que o real vale quatro vezes menos e que além de aluguel, água e energia, é preciso pagar pelo aquecimento, senão no inverno você morre de frio”, e completa: “Pode chegar a 6ºC durante o dia. É doloroso sair de casa nesse frio e as pessoas não vêm minimamente preparadas, usando roupas que usamos no Brasil”.
Neste sentido, Otero esclarece: “Muitos que apoiamos no retorno ao Brasil foram a Portugal ou a outros lugares da Europa sem planejamento, sem clareza de como é o mercado de trabalho; muitos não sabem que o SUS não existe lá fora ou que não pode ser acessado por estrangeiros”.

A brasileira reconhece que há um prisma de condições que levam alguém a querer se mudar, como desemprego, criminalidade ou apenas pela necessidade, semelhante a sua, de encontrar um lugar onde recomeçar uma história. Para todas essas demandas, ela considera Portugal uma boa escolha, já que os índices de criminalidade são baixos e caso haja disposição para trabalhar em funções fora da sua área de formação – Monize é engenheira de alimentos. Não é, no entanto, um lugar para juntar dinheiro ou ter uma vida de luxo.
Além do cuidado em pesquisar muito sobre qualquer país antes de se mudar, a jovem ressalta que ter uma mente aberta num território como Portugal é essencial. “Nos entendemos pelo português, mas a forma de agir e falar são diferentes. Certas coisas, que para nós soam rudes, para eles são normais de serem ditas. Há também frieza, mas não é nada que não dê para superar” explica.
Guilherme diz ainda que é preciso conhecer bem as alternativas de regresso: “Procuramos sempre difundir que as pessoas saibam minimamente quais são as vias de retorno, além de informações, endereços, contatos de serviços com os quais possam contar em caso de dificuldades, como o Consulado Brasileiro”.
Enquanto ainda assenta os tijolos da vida que tanto buscou e foi encontrar tão longe, Monize faz um apelo lúcido e sincero: “Não se mudem para outro país para falar mal do Brasil, por favor. Muitos adoram encontrar outros brasileiros para criticar o nosso país, não façam isso. Infelizmente nossos políticos são horríveis. Bolsonaro nos deixou com uma imagem pior do que era, mas podemos mostrar que também somos bons, educados, mais e melhores que a corrupção vista na mídia todos os dias. Nosso país é lindo, é incrível e as pessoas são maravilhosas”, finaliza.
A Cruz Vermelha está presente em 20 estados brasileiros e no Distrito Federal. Na página da entidade você encontra formas de ajudar, doar e se voluntariar.
A Organização Internacional para as Migrações atua em 173 Estados-membros em parceria com governos, outras organizações e a sociedade civil. Confira, na entrevista exclusiva com Guilherme Otero, mais informações sobre a instituição.
Reportagem produzida para a Revista Viajei. Confira o projeto.