Cuba está otimista para retomar Mais Médicos; por que Brasil deve comemorar?

Boa notícia é do cônsul cubano Pedro Monzon; segundo pesquisadora Juliana de Paula, médicos brasileiros aprenderam muito com caribenhos

“Se o Brasil solicitar novamente nosso apoio, estou seguro de que a resposta será positiva”. Essa é a resposta de Pedro Monzon Barata, Cônsul-geral de Cuba em São Paulo, ao ser questionado sobre a possibilidade de os médicos cubanos voltarem ao Brasil.

Ele é enfático ao explicar que os laços diplomáticos entre os dois países não se romperam e que hoje a situação é completamente diferente:

“Vemos com muito otimismo o presente e o futuro das relações bilaterais entre nossos países. Terminaram as posturas injustamente antagônicas que o governo anterior promoveu e podemos voltar a uma relação normal, de benefício mútuo”, avalia Monzon.

Os médicos cubanos atenderam cerca de 113 milhões de pacientes no Brasil, em mais de 3.600 municípios, com foco em zonas de extrema pobreza e em particular nos 34 distritos especiais indígenas.

Tanto o Mais Médicos quanto os profissionais da ilha voltaram a ser assunto no último dia 20 de março, quando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o retorno do programa, reformulado e aprimorado.

O projeto foi criado em julho de 2013, durante o governo de Dilma Rousseff, para levar atendimento médico básico a áreas remotas e em situação de vulnerabilidade no Brasil.

Para dar conta da demanda e diante da falta de profissionais brasileiros para atender essas regiões, foram abertas vagas para médicos estrangeiros. Cuba, em particular, contribuiu de forma ostensiva.

Apesar do papel que vieram desempenhar no país, os médicos cubanos foram alvo de ataques de setores da sociedade civil e da política brasileira, muitos dos quais para atingir Dilma Rousseff.

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, recrudesceu o clima de hostilidade contra os cubanos, ao ponto de Cuba orientar que seus profissionais retornassem ao país de origem. O Mais Médicos foi abandonado, assim como a Saúde, mesmo durante a pandemia da covid-19 que acabou matando 700 mil brasileiros.

Agora, o retorno de Lula, a reaproximação diplomática entre Brasil e Cuba e a retomada do PMM possibilitam uma nova era de colaboração entre os dois países e de contribuição dos médicos cubanos com a saúde brasileira.

Agressões e suspensão do Mais Médicos

O governo Bolsonaro “proferiu inúmeras calúnias e ameaças contra nossos médicos, seguindo, ao pé da letra, as mensagens originadas nos Estados Unidos”, denuncia Pedro Monzon.

A ameaça à segurança e a difamação da imagem dos cubanos, paralelas à desidratação do próprio PMM, não deixaram alternativa ao Governo Cubano a não ser retirar seus profissionais do Brasil, uma decisão que segundo o cônsul foi acompanhada de “muita dor”: “as comunidades que atendiam foram abandonadas a uma sorte trágica”.

A maioria dos profissionais decidiu voltar à ilha, porém muitos haviam criado relações e laços familiares no Brasil: “Os que decidiram ficar, por diferentes razões, têm suportado uma vida precária e realizam trabalhos não vinculados à profissão”, lamenta Monzon.

Juliana Braga de Paula, doutora em Saúde Global e Sustentabilidade pela Faculdade de Saúde Pública da USP e especialista no Programa Mais Médicos, reforça que os cubanos sofreram muitas formas de discriminação: “Um grupo de médicos cearenses recebeu os cubanos com ovos e gritos de ‘fora escravos’”.

Algo semelhante aconteceu em agosto de 2013, quando Ronaldo Caiado, então deputado federal de Goiás pelo Democratas e atual governador do mesmo estado pelo União Brasil, afirmou que a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) – que junto ao Ministério da Saúde de Cuba articulou o intercâmbio dos médicos cubanos – era um navio negreiro.

O ataque se deu em razão do salário pago aos profissionais de Cuba, inferior ao recebido por outros médicos do mesmo programa, porém, “uma discricionariedade do país de origem”, salienta de Paula: “A retenção de parte do salário para as políticas sociais é conhecida por eles e aceita por eles”.

A pesquisadora recorda que a falta de respeito e cordialidade foi presenciada por cubanos inclusive em secretarias de saúde municipais, o que provavelmente, ao menos, eram situações pontuais: “Todos que faziam e fazem o SUS e conhecem suas dificuldades de provimento médico estavam alinhados com o programa”, explica.

Choque e intercâmbio cultural

Os cubanos membros do Programa Mais Médicos eram funcionários de Cuba atuando no Brasil mediante um termo de cooperação entre os dois países. O sistema político da ilha, socialista, é que determinava diversas nuances do trabalho em solo brasileiro, do modelo de atendimento médico a questões salariais.

Para os cubanos, por exemplo, médicos e profissionais de limpeza estão em posição de igualdade, visão incomum no Brasil. “Somos um país cuja desigualdade social é explícita e convencional”, assinala de Paula. “Pra eles, não há diferença de classe ou cultura. Isso foi difícil de entender e de ser absorvido por muitos grupos”, acrescenta.

As diferenças se manifestam ainda na formação médica. Em Cuba, todos os estudantes de Medicina passam por três anos de atenção primária, independentemente da área em que farão residência. Além disso, há um trabalho histórico de dedicação a situações emergenciais, o “que faz com que esse médico ou médica se adapte com facilidade aos territórios diversos do país e seus problemas de mobilidade”, diz de Paula.

Não à toa, aponta Monzon, Cuba tem uma longa lista de colaborações internacionais ao longo das últimas seis décadas: “Nesse período, mais de 605 mil galenos apoiaram mais de 170 nações, geralmente as mais pobres, nas quais atenderam a comunidades humildes que habitam regiões intrincadas de cada país”, afirma o cônsul. Em muitas dessas missões, assumiram o risco de se contagiar com doenças que sequer existem em Cuba, como ebola e cólera.

Os médicos brasileiros, por sua vez, são formados para a raridade e tem acesso a mais tecnologia e medicamentos, uma influência da indústria farmacêutica e tecnológica no país, detalha Juliana. O bom é que, segundo a especialista, a onda do Mais Médicos tem trazido mudanças a esse modelo curricular nos últimos anos:

“O ideal é a mistura dessas duas formações. Acompanhando as supervisões entre médicos brasileiros e cubanos juntos, essa troca de experiência foi um dos pontos altos do projeto. Dois mundos que se atravessam e se complementam” […] “O brasileiro aprendeu muito com isso, posso assegurar. Tenho depoimentos de brasileiros que eram contra o projeto e afirmam que os cubanos os ensinaram não somente esse olhar ampliado de medicina, mas um modo de viver mais solidário e menos desigual”, descreve a médica.

Médico pela primeira vez

Autora da tese de doutorado “Análise do Ciclo de Política do Programa Mais Médicos no Brasil: Cooperação Cuba Brasil e seus efeitos para o trabalho médico”, Juliana de Paula afirma que o Mais Médicos contribuiu para que os brasileiros dessem mais reconhecimento e valorização à Estratégia de Saúde da Família, o programa nacional que define as diretrizes do atendimento básico: “apesar de ser um trabalho rotineiro e que salva muitas vidas, muitas vezes é silencioso”.

Por estarem preparados para atuar em regiões diversas, os cubanos conviveram de perto com as populações que atendiam. Se para algumas dessas comunidades o contato com um médico passou a ser mais frequente, para outras, era uma novidade.

“Municípios distantes como Parambu (CE), áreas periféricas, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas receberam a visita de um médico, muitas vezes, pela primeira vez”, afirma de Paula, que assevera:’ “O propósito de levar atenção primária às áreas remotas foi atendido definitivamente”. Ela destaca ainda que muitos estudos não demonstram mudanças nítidas em indicadores “porque o programa ficou pouco tempo”, mas “há mudanças com certeza na vida das pessoas”.

redução da mortalidade infantil em mais de 20% foi uma das importantes conquistas das regiões beneficiadas pelo Mais Médicos, enquanto o sofrimento desnecessário por doenças curáveis foi evitado, afirma Pedro Monzon.

O embaixador do corpo diplomático cubano reitera quão impactante foi a suspensão do PMM para os grupos atendidos, que reconheciam o trabalho dos galenos: “sempre foram distinguidos pelo profissionalismo, pela simplicidade, pelo caráter amistoso e pela capacidade de se misturarem com o povo”.

Os caribenhos representavam 80% de todos os participantes do projeto e em 5 anos chegaram a 20 mil colaboradores. A proporção se tornou uma arma da direita e extrema-direita brasileira, que passaram as acusar o contingente cubano de tomar o lugar dos médicos nacionais, uma alegação incorreta, observa Juliana de Paula:

“Não houve prejuízo no que diz respeito às posições ocupadas pelos médicos cubanos. Foram feitas duas chamadas. Os brasileiros não queriam ir para a maioria dos lugares que os cubanos ocuparam”, observa a especialista. Porém, ela elucida: “Não podemos demonizar o médico brasileiro. Há uma série de contingências que devem ser consideradas, como formação, cultura, expectativa de vida, padrão familiar, necessidade de continuar aprendendo”, que impactam decisões da área.

Vale lembrar: o principal propósito do PMM foi levar cuidado a áreas remotas e em situação de vulnerabilidade que sofriam com a falta de atendimento. Conforme comunicado pela Ministra da Saúde, Nísia Andrade, durante o relançamento do projeto, esse objetivo se mantém.

Na ocasião, Lula detalhou que os médicos brasileiros novamente terão prioridade dos editais do PMM, a começar pelos formados no país. Caso falte profissionais, as vagas serão abertas a brasileiros formados no exterior. E, se ainda assim não houver médicos o suficiente, o governo partirá para a contratação de estrangeiros. “O nosso objetivo não é saber a nacionalidade do médico, mas a nacionalidade do paciente”, disse o presidente.

Retorno da parceria Brasil-Cuba

O caminho encontrado pelos médicos cubanos contra as hostilidades que sofriam foi protegerem a si mesmos, além de contarem com o apoio das comunidades que atendiam, que gratas pelo atendimento que recebiam dos intercambistas, ofereciam “a melhor garantia de segurança”, explica Pedro Monzon.

Ainda assim, uma nova parceria Brasil-Cuba no âmbito do PMM demanda que as esferas do governo brasileiro façam frente aos assédios da extrema-direita.

Neste sentido, Monzon destaca que posicionamentos oficiais e publicações bem intencionadas nas redes sociais têm conseguido neutralizar campanhas negativas e discursos reacionários em diferentes países: “Se o governo brasileiro decidir pelo regresso dos médicos cubanos ao PMM, estou seguro de que tomará todas as medidas para garantir sua segurança e conforto”, aponta.

Juliana de Paula propõe maior engajamento do poder público nos processos de acompanhamento e supervisão dos caribenhos, e que prefeituras e redes de atenção estejam preparadas “para acolher, dar suporte e garantir o bem-estar dos cubanos e suas famílias”. Ao Governo de Cuba, sugere maior flexibilidade para que familiares possam vir ao Brasil visitar os médicos com mais frequência.

No âmbito técnico, de Paula indica que um maior uso de telemedicina e teleconsulta poderia apoiar os profissionais na elaboração de diagnósticos, e segue: “Deveríamos ter mais espaços de interlocução entre cubanos e brasileiros para aperfeiçoar nossa prática médica e social”.

“Fui muito impactada pela fala de um dos entrevistados que me disse que o país dele era muito pobre, faltava coisas essenciais, mas ele não entendia como a gente vivia em um país tão rico e permitia que os nossos irmãos passassem fome na nossa frente sem fazer nada”, recorda a especialista em referência à pesquisa do doutorado.

Pedro Monzon, que já exerceu funções diplomáticas em países como Austrália, Japão e Malásia, assinala que os médicos cubanos são educados sobre a base de valores e a concepção de que o paciente não é uma mercadoria: “O incentivo não é o dinheiro, mas satisfazer a necessidade do ser humano em uma área tão importante como a saúde”, finaliza.


Publicado originalmente em Diálogos do Sul.