“Decidi fazer música autoral, tenho produzido bastante e enquanto não souber que isso não vai dar certo, não vou desistir”, afirma o artista
Um café em uma das principais avenidas de Bauru foi o local escolhido para a entrevista. Diga-se de passagem, ‘entrevista’ talvez não seja o termo mais sensato para nomear este encontro que se revelou tão agradável. João chega às 11h30, como combinado, já com um sorriso no rosto, senta-se e pede um café expresso e uma água com gás.
A passagem pela cidade natal foi rápida: mais tarde tocaria no aniversário da filha de uma grande amiga, em Pederneiras, pequena cidade no interior paulista a pouco mais de 30 km de Bauru. Há cinco anos havia se mudado para o Rio de Janeiro, depois de vencer um concurso feito pelo Monobloco, juntando-se ao grupo em um show na Fundição Progresso. Pedro Luís (da Parede), na ocasião o convidou para ser o vocalista da segunda formação do Monobloco. Biano, já encantado à primeira vista pela capital carioca, decidiu levar e mostrar seu talento na cidade que anos depois serviria de inspiração para seu primeiro álbum, Caos&Beleza.

Aos 33 anos, João conta dos primeiros contatos com a música. Aos 9, veio o teclado, onde aprendeu a tocar de ouvido as melodias que mais gostava, sem aulas. Aos 12, a bateria, instrumento que mais estudou e tocou na banda de pop rock Paranoia. Com baixo tuba, fez parte também da tradicional Banda Marcial Liceu Noroeste. Em 2006, porém, as coisas mudaram definitivamente para Biano, quando o Preto Básico — banda fundada por ele e primeiramente batizada de Monte de Bossa — fez um show em homenagem à Cassia Eller. “Eller — Um show sobre Cássia Eller”, com lotação esgotada no Teatro Municipal, foi o momento em que o canto abraçou João — mais uma vez, sem aulas.
Caos&Beleza
Por algum tempo, João Biano se dividiu entre um trabalho formal e as apresentações em bares e casas noturnas de Bauru. Mas o contraste de sentimentos era incontestável: apenas na música ele se encontrava e, por isso, deixou o cargo de segurança do trabalho para se dedicar à carreira de músico. A decisão de aceitar o convite de Pedro Luís e se lançar no Rio de Janeiro foi então a maior expressão desse sentimento. “Firmeza, palavra, visão bilateral, visão sob ângulos diferentes de um mesmo acontecimento”, descreve João. Logo de início, ele foi sendo transformado e reconstruído pela capital carioca, tomado por um batuque interno, enriquecendo seu repertório com novos ritmos, enquanto se reconhecia cada vez mais como compositor, “acreditando no que estava escrevendo”, explica.

Não bastasse toda essa influência, ele não pôde deixar de perceber outra característica da cidade maravilhosa: sua dualidade. Realidade caótica e grandes maravilhas, o virar de esquina que tira o transeunte de uma cena de assalto e o coloca diante da beleza da floresta da Tijuca… Pontos positivos e negativos do Rio de Janeiro, além de uma notável crítica política, servem de base para João Biano expor a verdade sobre nossa essência — a presença do bem e do mal — em Caos&Beleza, seu primeiro disco, lançado em 2015. “O bem e o mal vivem na gente. E a gente luta em falar que é do bem. Mas tudo depende de quem vai nos influenciar no momento”, declara.
Integralmente produzido com financiamento coletivo e, como ressaltado por João, do jeito que planejou e imaginou, o trabalho destaca o pop batuque, enquanto mistura música regional, MPB, maracatu e ritmos do norte e nordeste.
Na capa, uma abelha da espécie Apis mellifera descansa. Desde a infância, houve uma relação muito próxima com o inseto, despertando o interesse do cantor em pesquisar e entender os motivos do desaparecimento delas de nossa vista: não por acaso, o homem. A dispersão de agrotóxicos e pesticidas, entre outros fatores, tem destruído colmeias inteiras em muitos lugares. Com a destreza de um poeta, Biano recita um trecho da faixa “Prólogo”, onde faz referência ao ciclo de polinização das abelhas: “Comprar a fruta que você mais gosta, e pra te ver sorrir, jogar flores pra você passar”. Já em “Epílogo”, ele vai direto ao ponto: “A colmeia tá vazia e o mel salgou, o ferrão entalado na garganta, a sensação de estar vivo e sentir que o tempo acabou”.
O fim das abelhas seria suficiente para gerar caos!
Assista o trailer do documentário Mais Que Mel:
Do que mais versa João Biano
Viver no Rio de Janeiro colocou o bauruense em contato com símbolos da ditadura, opressão, violência e resistência da história do nosso país como Zuzu Angel, Stuart Angel, Edson de Lima Souto e a Chacina da Candelária. Essa aproximação o inspirou em “Desmorra”, trabalho lançado em setembro de 2016, onde pede que a ditadura desfaça seus crimes e traga de volta as pessoas cuja vida levou. É perceptível, ainda, a presença de uma crítica ao feminicídio e ao patriarcado.
Biano pretende ser ainda incisivo nos próximos trabalhos através de uma crítica racial. Ele explica que até pouco tempo não havia percebido a necessidade de abordar com mais profundidade o tema, por não ter passado por episódios de discriminação. Há alguns meses, no entanto, ele teve uma surpresa:
“Fui visitar meu amigo Daniel, em um condomínio. Ao perguntar ao porteiro qual era o bloco 2 — onde mora meu amigo — não me foi explicado corretamente e acabei entrando no bloco 1. Subi até o andar que deveria ir e apertei a campainha, mas como não tinha resposta, insisti algumas vezes, até que liguei para Daniel e percebemos que estava no bloco errado. Fui até o bloco 2, meu amigo me recebeu e, passado algum tempo, o porteiro ligou falando que a polícia estava na portaria solicitando que eu descesse. De início, pelo absurdo que aquilo parecia ser, resolvemos não ir. Após 20 minutos, o porteiro tornou a ligar, dizendo que a polícia continuava a aguardar que eu descesse para me apresentar. Resolvemos ir até lá. Quando chegamos no hall de entrada do prédio, uma quantidade enorme de pessoas presentes: haviam evacuado todo o bloco 1. Os moradores começaram a me questionar do porquê fiquei apertando a campainha e expliquei que tinha havido um erro de blocos. A polícia cercou toda a rua, aproximadamente 40 militares, que ao perceberem o que estava acontecendo, começaram a ir embora, em aparente constrangimento. Um dos moradores disse ao meu amigo que da próxima vez ‘recebesse esse tipo de visita ali em baixo’. Tive que conter meu amigo nesse momento… Por um erro de apartamento, mobilizaram uma enorme força policial. Será que teria acontecido o mesmo com um cara branco? Felizmente, o condomínio tem câmeras, já possuímos as imagens e estamos tomando as medidas legais. O síndico me perguntou se quero dinheiro. Respondi que não: quero respeito!”
Em junho de 2017, João disponibilizou, no Youtube, “Samba do Absurdo”, parceria com o cantor e compositor João Cavalcanti sobre o impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
“E o que me sobra
se quando eu te empresto,
você tira tudo
e me manda o resto”
O próximo disco promete…
Segregação, adaptação e RESISTÊNCIA!
A cidade do Rio de Janeiro pode ser vista como o olho de um furacão, onde tudo acontece e as oportunidades se multiplicam. Mas para um cantor independente negro de MPB e com um rico repertório autoral, o acesso é mais complexo do que se imagina. O estereótipo presente na indústria de entretenimento insiste em segregar artistas como ele no samba, funk e pagode. Inclusive, não só gostar de abelhas e indagar seu desaparecimento motivou o músico a escolher o inseto para ilustrar a capa de seu primeiro disco, ao invés do próprio retrato: foi uma tentativa de fazer com que ouvissem Caos&Beleza movidos de curiosidade pelo conteúdo, ao invés da associação à ritmos aos quais não pertence.
É usual pedirem a ele canjas em rodas de samba, mesmo esclarecendo que não faz parte de sua essência. “Não sou sambista. O samba tem que nascer com o sujeito na veia. Quando me veem no palco, percebem que não sou dali. Eu não vou enganar ninguém”, desabafa. “Deixaram explícito que lugar de negro é no samba, no funk, no gueto. Não há oportunidade para fazermos coisas diferentes”.
O resultado disso é um mercado onde nomes negros de peso e alcance são encontrados apenas nesses nichos, enquanto na MPB — vertente de alcance internacional — e no sertanejo — que domina as paradas e o gosto popular atualmente — se encontrem apenas brancos surgindo, alguns inclusive por possuírem sobrenomes relevantes. Exceção à regra, João cita Liniker, que tem alcançado grande espaço e representatividade, mas ainda não recebe significativo investimento da indústria.
Alguns produtores são diretos com João afirmando que, para sua obra ser conhecida e reconhecida, precisa primeiramente se lançar como sambista, para só depois mostrar sua verdadeira identidade musical. “A grande maioria dos artistas negros que eu conheço do Rio, que adora tocar outras coisas, sempre foi mais para o samba, onde tem mais visibilidade”, declara.
Outra questão destacada por Biano se refere à aparente inércia por parte dos grandes ícones da MPB nacional que, segundo ele, debruçaram-se sobre o próprio legado, supostamente insuperável ou equiparável, e não demonstram ânimo em puxar novos talentos. “Chico, Bethânia, Gal, Caetano… com certeza tem gente fazendo coisa tão boa quanto nesse Brasil, mas onde estão?”, ele pergunta.
Resistência! Ainda que reconheça essa realidade de segregação e não encontre produtores interessados em seu trabalho, João Biano optou por persistir em seus projetos. Ao olhar para nomes como Mart’nália, demonstrando interesse no pop, ou Maria Rita, ultimamente se dirigindo ao público assíduo e fiel do samba, ele demonstra sua inquietação: “As duas poderiam cantar uma mesma música; fica claro que Mart’nália é boa fazendo samba, Rita é boa fazendo MPB.”
Algo semelhante ele observa entre estrelas da comunidade LGBT+. Nomes como Luiza Posse e Vanessa Camargo se inclinaram ao público, mas não com a devida propriedade: “Liniker é natural fazendo isso, Johnny Hooker é natural fazendo isso, As Bahias e a Cozinha Mineira são naturais fazendo isso, Pabllo é natural fazendo isso”, João explica.
Tomar novas frentes, sair do hip-hop, do samba, do pagode, do funk, mas sempre defendendo seu legado: é isso que o negro precisa fazer, segundo Biano. Emicida se abre ao pop, enquanto é atacado por usar um terno Ricardo Almeida de R$15 mil. Criolo leva sua música para fora da favela e é acusado de elitismo. Karol Conka, enquanto expande os horizontes de seu trabalho, é criticada pelos altos preços de uma linha de bolsas que assinou para a grife Soleah. “Quem é do gueto é do gueto, então tudo o que for de fora não entra e o que for de dentro não sai? Tem que sair e com força! Por que nós não podemos, por que a senzala não pode?”, Biano questiona.
A música negra em Bauru
As coisas aparentemente não mudaram muito desde a saída do musicista da cidade natal. O desinteresse por artistas locais continua partindo dos bauruenses, dificultando a criação de projetos como uma casa de samba ou MPB —ideia discutida há algum tempo, segundo João. “Uma quantidade de músicos extraordinários, grandes maestros, alguns tocando apenas em bares e casamentos”, afirma.
Bauru, segundo Biano, carece também de uma Secretaria da Cultura interessante, disponível e disposta, que desenhe e formalize políticas de fomento não só para a música negra, como para a cultura em si. E reconhece: “A sociedade mundial tem uma dívida com a população negra, e tudo o que for feito de editais para dignificar e mostrar essa força ainda vai ser pouco. Não tem como mudar o que foi feito no passado.”
Cássia Eller
Um dos momentos mais marcantes da vida de João Biano foi o show “Eller — Um show sobre Cássia Eller”, produzido junto ao Monte de Bossa — atual Preto Básico. O espetáculo lotou o Teatro Municipal e foi uma homenagem que João pretendia fazer ao ícone da música popular brasileira em vida. Iniciava o projeto quando recebeu a notícia da partida da cantora.
“Foi a época que eu mais gostava dela. Tinha feito uma tatuagem igual a dela. Via em Cássia uma salvação para a MPB. Depois dela, nada mais veio com tanta veracidade e verdade. Repertório refinado, escolhido a dedo, instrumentistas de mão cheia, personalidade, interpretação… de repente, acabou. Até as pessoas que escreviam para ela dizem que não existe ninguém hoje que consiga fazer o que a Cassia fazia”. E conclui: “Foi a cantora que mais ouvi. Acho que se eu parar de ouvi-la hoje, daqui a 15 anos vai ser a coisa que mais ouvi na vida.”
Além de Cássia, outras grandes referências e inspirações de João são Rita Lee, Raul Seixas e a Jovem Guarda.
Projetos futuros
João tem pensado em formar uma banda chamada Pêxe Seco, com mulheres. Segundo ele, elas são grandes musicistas, seja na percussão, no baixo ou na guitarra. Além disso, possuem vibes, pesos, ritmos e pensamentos únicos que refletem em um outro ambiente e atmosfera. Biano trabalha também em Fina Iguaria, faixa a respeito do seu eu feminino e sobre o negro.
Interessantes, ainda, são as várias ideias para o próximo álbum. Até o momento nomeado “Contradição”, o trabalho pretende dar voz à causa racial e das mulheres, em um tom mais militante e que, segundo ele, toque na ferida. “Precisamos fazer isso. No tempo em que vivemos, o que eles querem é justamente dividir o Brasil entre Bronx e Times Square. Temos que nos juntar”, conclui.
Entrevista produzida para a disciplina de Língua Portuguesa II — Língua e Literatura da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, campus de Bauru. Integra o projeto “Qual a cor desse som”, criado em parceria com Flavia Gasparini, Isabelle Tozzo, Leandro Gonçalves, Leonardo Oliveira e Letícia Pinho. Conheça o projeto.