Apaixonado por arte e com uma percepção sensível da vida, Luiz convida a refletir sobre o verdadeiro significado de “sucesso” e o valor das boas experiências
O apartamento onde vive Luiz Felipe, 37, compõe um bloco de quatro andares com outras vinte e três residências convenientemente satisfatórias e confortáveis. Outros seis blocos, mais ou menos semelhantes a esse, integram o condomínio Spazio Bréscia, na Vila Cardia, bairro da zona leste de Bauru, interior de São Paulo. Às 13h30, cheguei para tomarmos um café e conversar.

O céu nublado e parcialmente chuvoso havia feito a temperatura cair um pouco. Luiz me recebeu de jeans, suéter, chinelo e meias – hábito corriqueiro que disse brincando ter trazido da Suíça. A mesa do café estava pronta e muito bem organizada com xícaras, pratos, espátulas, creme de avelã, margarina e uma flor decorativa, além do pão que ele mesmo se dispôs a preparar no modo tradicional italiano: “Essa é a receita básica com água, farinha, sal e fermento. Na falta de um forno a lenha, o segredo é colocar a massa pra assar no forno normal dentro de uma panela de ferro. Na Itália, a gente comia com geleia de damasco ou creme de avelã. É típico, faz parte do dia a dia”, diz.
Ali, ele mora com João Favaro. No início do ano, Felipe foi aprovado no vestibular para Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e então o amigo o convidou para dividir o apê. “Quando prestei a prova, ele sentiu o quanto eu estava inteiro na construção desse capítulo e já adiantou que não precisaria me preocupar”, conta. Ajuda muito bem-vinda, principalmente quando a decisão de voltar às salas de aula acontece aos 36 anos. Afinal, formado em Direito, ele deveria estudar para ser aprovado em concursos, ter estabilidade financeira e uma vida tranquila. Não é bem assim.

Me esqueci do café: expresso, não estava na mesa pois ele prepararia assim que estivéssemos prontos para começar o bate-papo, um café bem tirado, “com um bom pó, água filtrada e feito com carinho”, segundo Luiz.
Desde cedo, a arte acompanhou o estudante, fosse no gosto por desenhar, de olhar e perceber harmonia, apreciar cinema, exposições, figuras artísticas, música, a postura do artista. Fazia parte da sua personalidade, mas sempre em segundo plano, como apreciador e não criador. Até que a atração pela área foi ganhando novos significados.
Em 2009, durante o intercâmbio na Itália – destino que devemos chegar adiante – se viu não perante manifestações, mas dentro de uma obra de arte penetrável. De volta ao Brasil, em 2012, abraçou uma oportunidade de trabalhar como intérprete e tradutor em diversas temáticas. A primeira delas foi com o grupo de ballet do Teatro Scala de Milão, atuando próximo dos coreógrafos, costureiros, copeiras, cabeleireiras e montadores de cenário. O ambiente construtivo o fez perceber uma afinidade pelos bastidores, onde era produzido o espetáculo. A própria língua italiana, a seu ver, traz uma série de contextos artísticos e históricos ligados a arte. Tudo isso vivendo em São Paulo, cidade com um amplo circuito cultural.
A vontade de ser mais que um observador da Arte crescia paralela ao desejo de voltar a estudar. A pós-graduação o atraía, mas não no campo do Direito. Em meados de 2014, ganhou de presente de um amigo o livro “Por toda p’arte” – um grande incentivo. Prestou o vestibular da Fuvest para ter uma ideia de como era a prova prática, que acontece na primeira fase, e foi aprovado nela – o que também o motivou. E como nem tudo são flores, surgiram obstáculos: situações imprevistas, mudanças no trabalho, nas relações com algumas pessoas. Em 2017, Luiz decidiu que voltar para casa da família era a melhor escolha. Ali, deu mais duas chances ao Direito, participando de concursos, mas não era para ser e, no fundo, ele sabia.
O final de 2018 foi dedicado exclusivamente ao vestibular da Unesp: “Reabrir apostilas e revisitar disciplinas do ensino médio foi delicioso. Pensei comigo mesmo ‘você tá louco, mas vai porque é por aí’. Me senti vivo e adulto, convicto que estava fazendo isso com a consciência dos 36”, relembra Luiz.
A psicóloga Laura Rinaldi explica que algumas pessoas concentram sua energia vital para o mundo externo, ou seja, vão confiantes de encontro aos objetivos e às pessoas, costumam ter iniciativa e gostam da ação prática, o que favorece sua adaptação às condições externas com maior facilidade. “Esses indivíduos podem ser classificados como extrovertidos, mas não podemos generalizar”, declara.
Além de voltar a estudar, morar em Bauru também foi uma reexperimentação para Felipe. Entre 2005 e 2006, ele viveu no município em razão do trabalho, assim como em São Paulo, entre 2008 e 2009, às vésperas da ida para a Itália – onde estaremos logo, logo. Antes, convido o leitor a seguir por esse roteiro…
Vivências, experiências e construções
Fred – como é chamado por amigos do curso de Artes por conta do bigode à la Freddie Mercury – é natural de Piraju (SP). “O capítulo cidade do interior é muito interessante pelo convívio, pela família, pelo cheiro de café, de bolo de fubá, de pão de casa da vó. Tem um rio que corta a cidade, o Paranapanema, uma natureza exuberante”, diz Luiz.
Quando criança, na década de 80, ele se recorda de ir com a família para São Paulo, onde havia coisas que na época ainda não chegavam no interior: shopping center, cinema, escada rolante, metrô, lojas de departamento. A identificação com a megalópole começava ali e duraria até hoje: “São Paulo, ou você ama ou você odeia, e eu amo”, afirma.
Rinaldi explica que fatores como o meio em que se cresce, estímulos e oportunidades recebidas são importantes na construção e na facilidade para encarar algumas mudanças: “A construção da personalidade começa desde o nascimento e se desenvolve ao longo da vida”, esclarece.
A relação com o Direito começou em 2001, em Jacarezinho (PR), à 90 km de Piraju. Trabalhava, estudava, ia e voltava todos os dias, durante os cinco anos da graduação. Prestes a se formar, passou em um concurso da Caixa Econômica Federal, a primeira das demais experiências profissionais em que não exerceria a profissão. Ao voltar da Europa, chegou a fazer um curso para se atualizar e reaproximar, mas logo surgiu a ocupação como intérprete, e o que era para ser um freelance virou seu trabalho pelos próximos anos. Hoje, ele fala da área com carinho: “O Direito é maravilhoso, a faculdade foi incrível, é uma carreira ótima, pra quem é daquela carreira”.

O pão estava macio por dentro e a casca dura por fora, como deveria ser. Preparei uma fatia com margarina e outra com creme de avelã; Luiz fez diferente: passou os dois na mesma fatia – o que acrescenta também ter absorvido durante o intercâmbio.
Aprovado na Caixa, saiu definitivamente de casa para assumir a vaga em Bauru, em 2006. “Até ali, eu estava construindo repertório com a cidade, as viagens, as pessoas, aquilo que assistia, os lugares que frequentava, com coisas boas e menos boas. Então, passei a usar o que aprendi e a seguir a estrada que era coerente a mim” destaca. Foi o período de perceber sua identidade e experimentar a sensação de ser anônimo, não para se esconder, mas ser quem era de fato.
A passagem por Bauru foi rápida, mas ele garante que guarda um amor por ter sido o primeiro lugar que o acolheu ao sair de casa. Em 2007, morando em Ourinhos (SP), fez viagens a trabalho para São Paulo, quando a redescobriu para além daquilo que via nas viagens em família. Em 2008, ainda pelo trabalho, se mudou para a capital paulistana.
O pirajuense relembra que passou por um burnout – estado de esgotamento físico e emocional ligado ao trabalho – e aderiu ao tai chi chuã e a aulas de italiano para lidar com o processo. O curso de idioma contava com metodologia diferenciada, uma professora incrível e colegas de classe com o interesse de viver um momento, além de apenas aprender uma nova língua. Ali, Luiz conheceu uma instituição católica italiana com uma proposta de intercâmbio multidisciplinar e intercultural.
O cansaço no trabalho e algumas novas interrogações profissionais e pessoais sinalizaram que talvez fosse o momento de experimentar uma mudança. Aquela seria a oportunidade. Ele se planejou e solicitou uma licença sem remuneração no banco, mas 15 dias antes da viajem, o pedido foi negado. Dar continuidade ao plano significaria perder o emprego e a estabilidade. Em setembro de 2009, Luiz desembarcou na Itália.
Intercâmbio
Entre as várias frentes de estudo disponíveis, Felipe escolheu a Sociologia. A ideia do projeto era reunir pessoas de diversas formações, religiões e partes do mundo no Istituto Internazionale Mystici Corporis. “Eu percebi que seria um ambiente saudável, com valores; uma oportunidade de estudo num contexto em que haveria uma troca humana junto ao conhecimento. Isso me atraiu”, afirma.

Na Itália, era oferecido o primeiro módulo do curso – o segundo seria na Suíça. Luiz morava nos arredores de Valdarno, próximo à Florença, na região de Campo Giallo. Para possibilitar a participação de pessoas de realidades distintas, havia atividades remuneradas ligadas ao curso. Por isso, depois dos primeiros meses, Luiz pôde se manter com um emprego na fábrica de móveis para dormitórios infantis da universidade. De manhã estudava, à tarde trabalhava; uma dinâmica autossustentável. “Estimulava o idioma, a convivência. Às vezes me deparava, por exemplo, com um padre PhD, de 50 anos, montando um berço comigo, feliz!”.
Um ano e meio depois, foi a vez da Suíça. Lá, se adaptou facilmente e viveria para sempre. O Cantão de Friburgo, onde fez estadia, tinha como primeiro idioma oficial o francês – o italiano era o terceiro. Logo que chegou, se recorda de um professor holandês apresentar o cotidiano suíço aos alunos: “Como cuidar da casa, preparar uma mesa, usar alguns objetos. Não era uma aula de etiqueta, mas de como se comportar ali. Afinal, por mais que eu leve a minha tradição, estou na casa deles. Saber como isso funciona é muito legal”.
A rotina era semelhante à da Itália: estudava de manhã e trabalhava à tarde. A diferença é que, com o italiano mais afiado e a experiência como bancário, foi para o setor de contabilidade da secretaria da faculdade. E nas horas vagas, cortava cabelo: “O corte lá é muito caro e o orçamento dos alunos, apertado. Essa era uma das atividades laborais disponíveis e decidi fazer o curso. Aprendi com uma cabeleireira espanhola. Como são várias culturas e em algumas o homem não pode tocar o cabelo da mulher, cortava apenas dos homens”.
Durante os três anos entre Itália e Suíça, Luiz aproveitou para conhecer alguns lugares, em especial em uma viagem pelo leste europeu. Sem contar com tradicionais guias turísticos, passou por Áustria, República Tcheca, Eslováquia e Hungria. “Um exercício de entrar, conhecer e explorar os lugares. Fui extremamente bem recebido. Culturas lindas e diferentes daquilo que estamos acostumados a associar à Europa, como da França e Itália, por exemplo” e confessa: “Foi o meu melhor momento comigo. Me senti dono da minha mochila, uma sensação de ter a vida nas mãos”.
Luiz não tem o hábito de tirar fotos nos lugares que visita; ele reconhece que precisa ajustar esse ponto. No seu quarto, no entanto, encontrei uma decoração muito atraente com imagens em forma de varal, feita por ele mesmo. “Muita coisa está na memória, cheiros, de todas as viagens, de cada lugar e cidadezinha”, ele garante.

Quando demora o olhar para os desafios desses três anos fora, o brasileiro fala de comportamentos preconceituosos que observou: “Na equipe de trabalho na fábrica de móveis, tinha um colega que conversava comigo de um jeito e com o africano de outro completamente diferente: eu era brother, o outro, empregado. Certa vez, num bar, duas mulheres conversavam e uma delas, visivelmente estressada, dizia de forma pejorativa que brasileiro quando não é puta, é viado”. Em primeira pessoa, ele diz não ter sofrido com problemas assim. Se recorda de passar por uma crise de rinite e sinusite na Itália e de observar que, no Brasil, o sistema de saúde é muito melhor.
Perguntei a ele se em algum momento pensou em desistir: “Sim! Se eu tivesse o trabalho no banco ainda, teria voltado depois do primeiro semestre. A saudade aperta, de tudo: família, amigos, ritmo, autonomia, da sua vida. Mas fazia parte do processo toda essa ebulição”.
No Brasil, Luiz morava sozinho. De repente, resumiu tudo a duas malas de 20 kg para dividir espaço com mais cinco pessoas de pontos diferentes do planeta: Brasil, Coreia do Sul, Burundi, Itália e Argentina. Claramente, surgiriam desafios na convivência, mas a maneira como decidiu encarar cada situação foi determinante para que tivesse um saldo positivo. “Essa experiência de troca é muito rica, pois não era só o contexto cultural do país que eu estava. Foi um curso livre, através dos olhares de todos ali e com foco na construção do dia a dia”.
O estudante fala que se viu convidado a refletir também sobre o que considera um problema ou dificuldade. “O jovem do Burundi com quem dividia a casa era professor de História, mestre em Ciência Política, dava aula em universidade e morava numa casa de pau a pique. É algo ruim? Não! Mas ajuda a desconstruir certas visões. Havia um amigo do Iraque, onde houve um bombardeio na época, que não sabia se a família estava viva”. E completa: “Estávamos todos no mesmo lugar, pertencentes ao mesmo planeta.”
Luiz partiu para a Europa depois de muito planejamento e organização, menos expectativas. Decidiu que descobriria lá o que estava esperando, sempre de coração aberto a cada lugar e experiência à frente. Ele cita hábitos que importou para seu cotidiano, como manter a casa sempre bem arrumada – o que era essencial para a convivência em grupo e porque nunca se sabe quando pode chegar uma visita. Foi de lá que trouxe também o café bem tirado e a mesa bem preparada. Aprendeu ainda a investir no que realmente vale a pena e a valorizar o que tem.
Cedeu, engoliu alguns sapos, se sentiu sozinho e até diminuído. “Estamos sozinhos no mundo”, ele afirma. Mas também recebeu sorrisos, absorveu o quanto pôde das pessoas – o que ele descreve como uma experiência antropofágica. “O mais legal foi poder conhecer a mim mesmo, minha identidade, como ser que existe, independentemente de qualquer outra coisa: família, profissão, expectativas alheias. Mas a gente se colocar nu e cru diante do espelho não é simples. É uma conquista trabalhosa que mexe com o ego, o caráter, com manias”, confessa.
Processo permanente de construção
Voltando ao repertório, mencionado por Luiz anteriormente, vê-se que sua construção não parou quando saiu de Piraju. É um processo contínuo, como é para todos nós, principalmente àqueles que se dispõem a enxergar a trajetória como um aprendizado.
“A criança, desde o início, possui uma personalidade distinta e única com seus próprios meios de ir ao encontro da experiência e de como responder a ela. E é a soma de tudo isso que faz com que sejamos ímpares”, explica Laura Rinaldi.

A escolha pelo curso de Artes não se deu com o objetivo de seguir para uma área que o tornasse rico, através de um trabalho exaustivo e da constante espera pelo final de semana ou aposentadoria. “É sobre construir no dia a dia algo que seja coerente comigo, mesmo com os desafios”. E sobre as aulas, comenta: “Existe uma questão geracional, pois a sala tem em média 19 anos, mas é enriquecedor se você olha com o viés correto e percebe a beleza em determinados comportamentos, nos muitos universos e realidades que encontra ali”. Ele entende também que não deve pautar o presente com base no que já teve: “Se fosse calcular a casa que morava na Europa ou o salário que tinha em São Paulo antes de fazer intercâmbio, eu piraria”.
A cidade natal tem um slogan que diz “Eu sou do rio de piraju”, e isso o representa: “Porque o rio tem água corrente e eu sou do rio, não da cidade. A água nunca está no mesmo lugar, ela é cíclica e por vezes volta. E está tudo bem!”. Assim ele retorna para visitar amigos e família em Piraju, mas movido pela correnteza, Luiz se vê disposto a ir cada vez mais longe.
Existem inúmeros cognatos e falsos cognatos entre idiomas que nos fazem refletir. A palavra sucesso em italiano não está ligada a status de realização, como um auge, o máximo alcançável, mas sim a algo que aconteceu e que, portanto, teve início, meio e fim. “Eu trouxe isso comigo. Claro que desejo realizações, coisas boas. Mas essa palavra eu não almejo mais. Vejo que alcançar o sucesso, esse máximo, denota o encerramento de um processo, um fim. E pra mim a vida é uma eterna busca”.
Esta reportagem foi produzida para a Revista Viajei. Confira o projeto.